Por Cesar Kuzma – teólogo
O tema do exorcismo não é um tema que
me atrai enquanto teólogo nem como cristão. Não porque não acho relevante, mas
porque acredito que já é um caso superado para a teologia e em grande parte
para a Igreja Católica e para muitas das demais Igrejas cristãs. Sei que ainda
hoje, algumas igrejas cristãs e alguns movimentos da Igreja Católica persistem
em tal prática e insistem com seus argumentos. No entanto, eu, em minha
opinião, e também, respeitando as demais, vejo que isso já é algo superado.
Os relatos que temos na Sagrada
Escritura e na tradição da Igreja devem ser vistos dentro de um horizonte
cultural que foi próprio de uma época, refiro-me aqui ao período contemporâneo
de Jesus e o caminhar da história até a Idade Média e princípios da era
moderna. Há em todas essas expressões uma construção sociocultural e religiosa
em cima disto, hoje, seguramente, temos outra interpretação (religião e ciência
não se excluem, mas podem comungar e servir em benefício do ser humano e do
mundo). Não podemos conceber uma ideia fora do contexto que nós estamos e não
podemos ler uma ideia do passado a partir do nosso contexto cultural, social e
religioso. Cada época está alicerçada por uma visão cosmológica (visão de
mundo), para tanto, deve-se buscar compreender o todo da questão. É certo que
na época de Jesus havia um panorama favorável a esta prática: muitas doenças
não eram explicadas; muitos sintomas psicológicos nem eram cogitados e sequer
conhecidos; a visão de mundo e de ser humano era diferente; a questão religiosa
estava na base da sociedade, era ela, pois, que determinava os princípios e que
trazia as explicações sobre o ser humano, sua origem e fim, sobre o contexto
social etc.
Quando os relatos bíblicos nos contam
a atuação de Jesus, suas curas e exorcismos nós temos que enquadrá-los dentro
desse contexto, se não fizermos isso estaremos interpretando erroneamente o
fato ocorrido. Além disso, temos que ter em mente que os evangelhos não são
relatos de história, mas testemunhos de fé. O que isso significa? Significa que
a presença de Jesus em meio ao povo provocava uma mudança. Significa que ele
trazia algo novo, que trazia o bem, que cultivava o amor etc. No encontro da
pessoa com Jesus a sua vida era transformada e começava-se uma vida nova, com
um novo sentido, dentro de uma nova perspectiva. Havia uma ruptura do “antigo
eu” com o “novo eu”. É possível sim que Jesus também tenha entendido que estava
exorcizando, mas temos que ter em mente que ele estava inserido num contexto;
devemos entender que ele não era um ser isolado do mundo, mas atento ao mundo,
por sua vez, influenciado por ele. Nisso, não há nenhuma blasfêmia contra
Jesus, ao contrário, é doutrina cristã, é dogma de fé que ele era
verdadeiramente humano e verdadeiramente Deus. Crescia em idade, sabedoria e
graça, diante de Deus e de todos (cf. Lc 2,52). Ele assumiu “toda” a condição
humana. Segundo a fé cristã, é por isso que podemos ser salvos (cf. Fl 2,6-9).
A mensagem de Jesus Cristo que deve
vigorar nas Igrejas cristãs é a “Boa Nova” do seu evangelho. Este é o pano de
fundo da questão. É por aí que devemos entender aqueles “exorcismos” e não num
sentido figurativo, demoníaco e paranormal. O mesmo ocorre com o
desenvolvimento destas questões durante a história do cristianismo. Todos os
fenômenos devem ser vistos dentro do ambiente em que foram construídos. Isso
tudo sem contar as influências de outros povos, de outras culturas e de outras
religiões. No atual momento em que estamos vivendo nós não podemos ignorar os
avanços que tivemos em nível de reflexão teológica, antropológica, científica
e, neste caso, principalmente, psicológica. A teologia reflete a partir do
“senso de fé” da Igreja, que também esse é produzido em um ambiente cultural e
religioso próprio. Neste ponto, a teologia também tem uma responsabilidade para
com a Igreja de educar – e reeducar – em alguns conceitos. Muitos dos fenômenos
tidos hoje como "paranormais", como "possessão demoníaca"
podem ser compreendidos em nosso contexto através de outros elementos psicológicos,
antropológicos, científicos, sociais e culturais. Estamos num momento de
complexidade e não há uma resposta pronta para tudo. As pessoas estão num mundo
complexo e se sentem complexas também. Muitas vezes procuram algo, uma
resposta, um sentido e não encontram. Não conseguem mais olhar para dentro de
si mesmas e, como consequência, criam-se eventos e situações que aparentemente
produzem uma fuga ou uma leve compreensão da realidade. Isso talvez explique
alguns eventos que ocorrem atualmente. Não os vejo como possessões, para mim,
isso é algo superado. Forçar a isso pode levar ao fundamentalismo e ao
fanatismo, ambos ruins para a religião e para a sociedade.
Tais eventos devem encontrar uma
resposta plausível na existência humana e na racionalidade. A fé não deve se
encontrar fora da razão, ao contrário ela ancora-se nela para fundamentar a sua
experiência. O ser humano é livre para decidir-se no mundo. Deve, também, com
isso, assumir as consequências da sua decisão. O ser humano é um ser influenciável,
deve, contudo, buscar um escape e encontrar a sua verdadeira razão de ser. O
ser humano é um ser em meio a máquinas e estruturas que, às vezes, o posicionam
contra si mesmo, contra o próximo, contra o mundo e contra Deus. Talvez estes
sejam os “demônios” de hoje. Eis aqui algo que deve ser considerado. A palavra
“Dia-bolos” representa aquele que
divide. Tudo o que causa divisão no ser humano ou rompimento com a sua razão de
ser torna-se isso. Obviamente, podemos perceber que não se trata de um “ser” ou
um “ente” que determinam as nossas decisões, mas de uma estrutura, tanto
psíquica quanto sociocultural e, também, religiosa.
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