quarta-feira, 20 de junho de 2012

A esperança em Efésios



Por Cesar Kuzma – teólogo

Segundo o NT, a esperança cristã possui como objetivo principal a salvação (soteria), algo que se tornou presente e concreto na pessoa de Jesus Cristo. Isto é muito bem elucidado por Paulo em suas cartas, como também no hino da Epístola aos Efésios (Carta tradicionalmente atribuída a Paulo, mas como já se sabe hoje, não é de Paulo):

Bendito seja o Deus e Pai
de nosso Senhor Jesus Cristo,
que nos abençoou com toda a sorte
de bênçãos espirituais,
nos céus, em Cristo.
Nele nos escolheu
antes da fundação do mundo,
para sermos santos e irrepreensíveis
diante dele no amor.
Ele nos predestinou para sermos
seus filhos adotivos por Jesus Cristo,
conforme o beneplácito da sua vontade,
para louvor e glória da sua graça
com a qual ele nos agraciou no Amado.
E é pelo sangue deste que temos a redenção,
a remissão dos pecados,
segundo a riqueza de sua graça,
que ele derramou profusamente sobre nós,
infundindo-nos toda sabedoria e inteligência,
dando-nos a conhecer
o mistério da sua vontade,
conforme decisão prévia que lhe aprouve tomar
para levar o tempo à plenitude:
a de Cristo encabeçar todas as coisas,
as que estão nos céus e as que estão na terra.
Nele, predestinados pelo propósito
daquele que tudo opera
segundo o conselho da sua vontade,
fomos feitos sua herança,
a fim de servirmos para seu louvor e glória,
nós os que antes esperávamos em Cristo.
Nele também vós,
tendo ouvido a Palavra da verdade
o evangelho da vossa salvação
e nela tendo crido,
fostes selados pelo Espírito da promessa,
o Espírito Santo,
que é o penhor da nossa herança,
para a redenção do povo que ele adquiriu
para seu louvor e glória (Ef 1, 3-14).

Ao analisarmos brevemente este texto, podemos observar que já há na sua teologia uma certeza produzida pela esperança. Dizemos aqui que já é um reflexo da experiência espiritual do próprio autor (ou comunidade primitiva – influenciada pela experiência de Paulo)[1]. Paulo sempre utiliza o termo grego elpis para caracterizar a sua esperança, porém a reafirma mediante os conceitos do AT. Assim, ousamos dizer aqui que se trata de uma espera confiante e perseverante. Algo que é sustentado pela revelação de Cristo contida na cruz e na ressurreição. Neste hino de Efésios, o autor sintetiza todo o mistério salvífico contido na encarnação de Jesus, para isto, ele demonstra a vontade salvífica de Deus atuante desde a eternidade: “nos escolheu antes da fundação do mundo”. Esta vontade salvífica se sustenta por toda a história e culmina com Cristo, nosso Deus e Senhor, conforme Paulo escreveu em outra carta: “A imagem do Deus invisível” (Cl 1,15). É reforçado o destino humano para com Deus, sustentado na esperança da salvação e, ressaltado pela filiação divina. Tudo, porém, acontece por obra da graça, fruto do amor de Deus, “com a qual ele nos agraciou no Amado”.
Esta encarnação, obra amorosa de Deus, encaminha a humanidade à sua remissão completa. Tudo que foi assumido pelo Filho será redimido, dirão os Padres da Igreja[2]. Assim, confirmamos que, Cristo é a Palavra viva do Pai, é o Logos eterno, Evangelho da nossa salvação, que sela pelo Espírito Santo a consumação de toda a criação. Cristo assume a humanidade no desejo de que a humanidade compartilhe da sua divindade, só assim, Cristo será tudo em todos (cf. 1Cor 15,28). Trata-se do mistério da verdade, escondido desde antes da criação do mundo e revelado agora para a salvação de todos e para a glória de Deus Pai. Segundo essa teologia a nossa esperança tem endereço certo e por essa razão se confirma. É algo seguro capaz de nos transformar em novos seres, portadores de uma nova vida. Vejamos isso de maneira mais detalhada a partir de trechos extraídos do hino:

1) Filhos adotivos por Jesus Cristo: Esta adoção se concretiza pela encarnação do Filho, para a qual Deus nos predestinou desde toda a eternidade, a ponto de sermos seus filhos adotivos por Jesus Cristo. Somos desta forma, cobertos de bênçãos espirituais em que o próprio Deus, em Cristo, decide por fazer parte da nossa humanidade. Ao assumi-la, Ele se torna igual a nós e, evidentemente, torna-nos iguais a Ele[3]. É uma proximidade única que nos direciona para um lugar definitivo, pois o endereço do filho sempre será na casa do Pai. No momento que aceitamos isso, adquirimos a confiança necessária para se comprometer com o plano de Deus para toda a humanidade. Percebemos, então, que o nosso futuro está com Deus e em Deus. Ele é a nossa força e a nossa esperança.

2) Redenção e remissão pela graça: “E é pelo sangue deste que temos a redenção, a remissão dos pecados, segundo a riqueza de sua graça” (Ef 1,7). Esperamos deste modo o perdão e a justificação de toda a falta e de todo o pecado. Somos justificados pelo seu amor. Em Cristo todos morremos. Ele assume a nossa morte em sua morte, se faz pecado para do pecado nos libertar. Esta sua ação reflete em toda a humanidade que foi de uma vez por todas marcada e redimida com o seu sangue. A cruz possui um significado ainda maior porque reflete a ressurreição, que é o grande sinal de salvação, o sinal da certeza. É neste ponto que se situa a esperança cristã, no entanto ela não rejeita a cruz, visto que o Ressuscitado é antes o Crucificado. O ponto principal da esperança cristã aqui é a justificação do pecador, fruto da graça divina[4]. E, para o autor da epístola, esta remissão acontece de forma gratuita em Cristo: “Mas Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos em nossos delitos, nos vivificou juntamente com Cristo – pela graça fostes salvos! – e com ele nos ressuscitou...” (Ef 2,4-6).

3) Do tempo à plenitude: Deus se tornou tempo para que o tempo se tornasse eterno. Este é o kairós responsável pela nossa salvação. A esperança cristã se confirma na Parusia, vinda gloriosa de Cristo, que pela sua ressurreição inaugura um novo tempo, uma nova humanidade, que chegará à sua plenitude, onde Cristo passará a ser tudo em todos (cf. 1Cor 15,28) e entregará tudo ao seu Pai, para sua eterna glória. Assim se completará a obra da salvação e a criação chegará ao seu fim, que não é um fim-fim, mas um fim-para, para o eterno. O marco deste fato, o momento kairós é a ressurreição de Cristo, que abre definitivamente à história da criação o seu futuro escatológico, conforme a mesma carta confirma mais adiante: “O que desceu é também o que subiu acima de todos os céus, a fim de plenificar todas as coisas” (Ef 4,10). Nesta perspectiva, Cristo é a chave deste futuro. Ele se torna o Éschaton, pois assume em seu ser a plenitude da vida e, com isso, a plenitude do tempo, que rompido para sempre se torna eterno.

4) A herança do Filho: Por obra da graça somos herdeiros de todos os bens espirituais que Cristo deixou. Como aparece também em Romanos: “E se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, pois sofremos com ele para também com ele sermos glorificados” (Rm 8,17). Somos também os destinatários do Reino e do seu Evangelho, que em sua mensagem nos traz a salvação eterna. Portanto, a nossa esperança desta salvação consiste no fato de que em Cristo, somos herdeiros de uma vida nova, que com Ele nos revestimos do Homem Novo, criado segundo Deus na justiça e santidade da verdade (cf. Ef 4,24).

5) Cristo, o Evangelho da salvação: A expressão Evangelion é uma palavra predominantemente paulina. Das 76 ocorrências no NT 60 são dentro do corpo de suas cartas. É uma palavra-chave da sua teologia e da maneira como assume a posição de apóstolo, decidindo por toda a sua vida evangelizar. Isto significa levar a Boa Nova, a novidade que Cristo traz. Ele enriquece o conteúdo do evangelho como força de salvação. Para Paulo somente o evangelho de Cristo justifica e defende a fidelidade a Deus[5]. Por certo, a nossa esperança se fundamenta em Cristo. Seu Evangelho se torna uma força capaz de transformar a nossa vida e a vida ao redor, levando à plenitude toda a obra da criação. O evangelho de Cristo é um sinal visível de salvação, portanto, de esperança. Cristo é a pedra angular (cf. Ef 2,20). Nele somos edificados para sermos habitação de Deus, no Espírito (cf. Ef 2,21).

6) Selados pelo Espírito da promessa: O que solidifica a nossa certeza, que nos impulsiona a fé, é a marca que trazemos do Espírito Santo. É impossível haver esperança sem que haja a ação do Espírito. Foi Ele quem falou outrora pelos profetas, que guiou a Cristo e que hoje conduz a Igreja. Ele é que nos conduz pelo caminho verdadeiro e nos direciona a plenitude do Reino. Para a comunidade paulina a certeza do Espírito era tão importante quanto à certeza da ressurreição de Cristo. Estas duas coisas estavam totalmente interligadas. É a marca do cristão, que pela promessa assegura-se na sua esperança, que no Espírito sempre se renova[6]. Frisamos aqui a palavra promessa porque ela só pode ser compreendida como evento de revelação de Deus à luz do Espírito Santo.
                       
            Assim, partindo deste hino cristão da Epístola aos Efésios, ousamos alicerçar a esperança na promessa de salvação de Deus que foi concretizada em Jesus Cristo. Ele é a nossa esperança. Somente por meio Dele podemos ser chamados de filhos. Temos em Cristo um irmão maior, que por amor nos redimiu e fez cumprir em nós as primícias do Espírito (cf. Rm 8,22-24). Somos agora herdeiros de uma nova vida que se inicia, é um novo tempo que advém e transforma o que era velho em novo. Este é o Evangelho de Jesus Cristo. Este é o Evangelho da Promessa, capaz de despertar em nós a esperança para um futuro que irrompeu no Cristo ressuscitado, mas que para nós ainda não é vislumbrado totalmente. Vivemos, então, pelo Espírito da promessa, ansiando a libertação definitiva.



[1] DUNN, J. D. A teologia de Paulo, p. 499-500.
[2] É uma expressão muito usada na Patrística, porém ilustramos aqui com uma bela passagem de Gregório de Nazianzeno (329-390), uma poesia que retrata a natureza humana: “... finalmente o Cristo, que uniu a sua natureza à nossa para trazer socorro a meus sofrimentos através de seus divinos sofrimentos, para divinizar-me graças a sua condição humana”. GREGÓRIO NAZIANZENO. Poema sobre a natureza humana. In: GOMES, C. F. Antologia dos Santos Padres, p. 192.
[3] Colocamos o adjetivo igual por entendermos que sua encarnação não o deixa apenas semelhante a nós, mas o fez verdadeiramente um ser humano, como atesta o credo cristão.
[4] Sobre as implicações acima mencionadas e que são resultados da morte expiatória de Jesus, ponto importante da teologia paulina, indicamos: DUNN, J. D. G. Op. cit., p. 251-280. Cf. tb.: KESSLER, H. Cristologia. In: SCHNEIDER, T. (Org.). Manual de dogmática, p. 253-257, v. 1. Sobre a graça, indicamos: MIRANDA, M. F. A salvação em Jesus Cristo, p. 107-113. BOFF, L. A graça libertadora do mundo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1977. PESCH, O. H. Graça. In: Dicionário de conceitos fundamentais de teologia, p. 327-332. LA PEÑA, J. L. R. Graça. In: Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo, p. 319-325. E, por fim, dois clássicos agostinianos: AGOSTINHO. A graça I. Trad. Agustinho Belmonte. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1999. Id. A graça II. Trad. Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1999.
[5] DUNN, J. D. G. Op. cit., p. 203-207.
[6] Para maiores informações sobre a compreensão do Espírito Santo e a Esperança em Paulo, consultar a seguinte obra já citada anteriormente: DUNN, J. D. G. Op. cit., p. 472-502.

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