domingo, 14 de abril de 2013

Mãos que..


Por Cesar Kuzma - teólogo leigo

 
Mãos que fazem...
Mãos que não fazem

Mãos que afagam...
Mãos que caluniam

Mãos que regam...
Mãos que destroem

Mãos que fortalecem...
Mãos que humilham

Mãos que regem...
Mãos que omitem

Mãos que lavam...
Mãos que acabam

Mãos que salvam...
Mãos que matam

Mãos que amam e mãos que transformam!

Senhor, dai-nos mãos que levem esperança e que se façam calejar no serviço de seu Reino!

Amém!



Rio de Janeiro, 14 de abril de 2013.


sábado, 13 de abril de 2013

Lá vai Francisco pelo caminho... / Um mês de pontificado de Francisco - novas posturas e sinais de novos tempos...


Por Cesar Kuzma - teólogo leigo

Lá vai Francisco pelo caminho... É com uma lembrança da música de Vinícius de Moraes (Lá vai São Francisco pelo caminho) que iniciamos a nossa reflexão, na intenção de fazer valer aqui o nosso simples olhar sobre o primeiro mês de Pontificado de Francisco.

Depois do honroso gesto de renúncia de Bento XVI que demonstrou ao mundo a simplicidade e o ponto alto do ministério que é (e deve ser sempre) o serviço, com a coragem de apresentar à Igreja a “fabilidade” da “infabilidade”, para com isso resplandecer a verdadeira “infalibilidade”, que acontece quando a Igreja (em todo o seu conjunto) se deixa conduzir e guiar pela ação do Espírito, algo aconteceu no dia 13 de março de 2013. Depois deste episódio fomos apresentados a um homem que chegou a Roma vindo (como ele mesmo se apresentou) do “fim do mundo”, mas fazendo alargar o olhar da Igreja para além do continente europeu e para outras realidades enfrentadas pelas comunidades de fé e por todos aqueles homens e mulheres de boa vontade. Depois deste evento, apresentou-se a nós o novo “bispo de Roma” que adotou o nome de “Francisco”, com um olhar direto para São Francisco de Assis, o santo dos pobres, que na sua nudez e simplicidade disse a Igreja um novo modo de ser, mais próximo ao homem de Nazaré, que é o Cristo, o sustento de toda a fé. Como bem acentuou Leonardo Boff em várias ocasiões: “Francisco não é um nome, mas é um projeto de Igreja”.

Já nos primeiros minutos a postura de Francisco trouxe novas impressões: um papa que não se chama papa, mas que insiste em se chamar de “bispo de Roma”, na intenção, muito provável, de resgatar a colegialidade eclesial, ponto forte do Vaticano II e que não foi posto em prática de maneira concreta; um Francisco que se apresenta ao povo de modo simples e sem gestos de vitória, mas apenas com a batina branca, usando a estola somente na hora de abençoar os fiéis, tirando-a logo em seguida; um Francisco que antes de qualquer coisa se curva diante do povo que está na Praça de São Pedro e pede a eles a benção, este gesto (talvez de momento) foi de uma riqueza incrível e com grandes consequências, o “povo”, o “povo de Deus” é reconhecido, é tratado com dignidade (este será um fato para sempre lembrado); um Francisco que usa sapatos comuns, que usa uma simples cruz de metal, que não usa o anel de ouro, que paga as suas contas, que se recusa morar no quarto pontifício, mas que vai a um quarto simples na casa ao lado, onde convive, celebra e tomas as suas refeições com outras pessoas; um Francisco que abandona o trono e passa a usar uma simples cadeira; um Francisco que não usa os adornos carregados, mas que se comporta como um bispo, que abre mão da mitra em muitas ocasiões e que se senta muitas vezes ao fundo para observar, respeitando o andar das coisas; um Francisco que fala dos pobres e conclama uma Igreja dos pobres para os pobres, relembrando aqui muitos bispos latino-americanos que marcaram a nossa história; um Francisco que fala do amor, mas do amor “misericordioso”, um amor que se desprende e vai “rebaixado” ao encontro do outro, porque é o seu próximo; um Francisco que se sente bem em caminhar no meio do povo, que prefere tocá-los e deixa que eles o toquem; um Francisco que vai ao povo como a quem vai a um amigo, fugindo dos protocolos e das amarras que o cargo lhe traz e lhe incomoda; um Francisco que foi ao Conclave e apresentou aos demais alguns pontos urgentes de uma Igreja que precisa de reformas e nota-se que ele as quer; um Francisco que com sua atitude afasta (mas sem que esta seja a sua intenção) um grupo de tradicionalistas que sempre se apoiaram nos braços de Roma e agora sentem-se incomodados com a liberdade com que Francisco aborda as questões e com a maneira como ele não dá importância a fardos litúrgicos carregados que nada acrescentam; um Francisco que incomoda a alguns, mas que atrai a outros, principalmente os mais pobres que viram nele alguém que os entende; um Francisco que também atrai um grande número de teólogos (que estavam excluídos) que viram nele uma alternativa de mudança e de por em prática as questões do Vaticano II, os teólogos veem no Francisco um ponto novo e resolveram dar-lhe a confiança; um Francisco que aproxima das decisões da Igreja as congregações religiosas que estavam tão afastadas e que decide nomear uma Comissão para auxiliá-lo nas decisões e reformas futuras, fato que já incomodou a vários. Este é Francisco, aquele que perdoou os cardeais por terem votado nele... E que vai aos poucos abrindo caminho...

Se ele vai mudar muita coisa e se ele vai fazer as reformas que todos queremos, bom, é só o tempo que vai dizer esta resposta. O que ele faz é mudar primeiro em si mesmo, pois também para ele é algo novo e que deve ser assimilado. Ao assumir o Pontificado, é claro que é o Bergoglio que o faz, mas ao dizer que o seu nome é “Francisco”, bem, aí há uma ruptura de estrutura (e estruturas), que deverá, em alguns casos, tirar as “vestes” que nos arrastam para libertar-se na esperança de um novo tempo que surge e quer (urgentemente) acontecer.

Não sabemos o que vai acontecer, por ora, podemos ter esperança e se lançar ao novo que está por vir. Não será fácil para ele, pois o poder institucional não cederá tão facilmente. Mas é aí que nós poderemos ver, de fato, se a Igreja é o que é pela sua essência ou se ela é o que é por outras forças. Vale agora um gesto de confiança, e de esperança.

Mas situações acontecem e ele (Francisco) as vê, sente e sabe. No dia de sua posse na Praça de São Pedro, durante a celebração, com um rito ainda carregado e que deixava Francisco um tanto incomodado, notou-se que no momento da comunhão, Francisco sentou-se e olhou à multidão. O que passou pela sua cabeça? As inquietações que sentiu, que vontades sentia naquele instante? Ele estava no meio de tantos, mas também tão sozinho... Perguntas que talvez passassem por sua cabeça. De repente, e este é o ponto, ao olhar a multidão, e a televisão focou bem esta imagem, uma faixa é levantada e se apresenta acima de outras tantas que ali estavam. Percebe-se que Francisco a viu. A frase dizia, em italiano: “Francesco, ripara la mia casa”.

Amigos, esta frase inquietou o Poverello de Assis quando sentiu o seu chamado e passou a reconstruir a Igreja com as próprias mãos. Esta frase, com certeza, inquietou o Papa Francisco e vai inquietá-lo durante todos os dias do seu pontificado. Isso é certo! O que podemos esperar e pedir é que esta frase também inquiete e incomode a nós, os Franciscos e Franciscas da vida, do mundo e da Igreja, para saibamos a razão pela qual aqui estamos e para que fomos chamados. Que esta frase não saia da nossa mente e do nosso coração: “Francisco, Francisco, vai e reconstrói a minha Igreja que está em ruínas”.

É isso. Lá vai Francisco pelo caminho...


Rio de Janeiro, 13 de abril de 2013.

Cesar Kuzma é Doutor em Teologia pela PUC-Rio.
Autor do livro “Leigos e Leigas” da Ed. Paulus. É um dos organizadores do livro “Age Deus no mundo?” da Ed. PUC-Rio e Reflexão.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

E quem disse que estamos trajando roupa para a festa? Uma reflexão a partir da fé e em defesa dos direitos humanos



Por Cesar Kuzma - teólogo leigo



Amig@s!

Temos acompanhado nas últimas semanas um arrastar de notícias na mídia e de diversos comentários que se multiplicam nas redes sociais, a respeito da presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara (CDHM), na pessoa do Deputado e Pastor Marcos Feliciano (do PSC-SP). Este é um ponto que já vem acontecendo seguidamente, com manifestações, opiniões e conflitos. O que se apresenta em debate, e esta é uma questão a se considerar seriamente, é o fato de que Feliciano usa da plataforma política para interesses próprios e os de sua denominação cristã, não se esquivando de tecer seguidas vezes uma opinião racista, homofóbica e discriminatória para diversos grupos, articulando-se para isso numa base teológica, a meu ver, sem fundamento plausível e de tom extremamente fundamentalista. Uma postura assim não é coerente com o cargo que ocupa, o que demonstra bem a grave crise do sistema político brasileiro. Este é o primeiro ponto que nos levou a escrever este breve artigo.

No entanto, surge para nós aqui outra questão, que é por onde gostaríamos de aprofundar esta reflexão. Nota-se, agora, em várias frentes, o surgimento de um discurso, meio “pró” Feliciano, ou para ser mais objetivo, meio “pró causa” deste, tendo a intenção de com este tom salvaguardar a família, o direito e os bons costumes, levando a acusar “práticas” e “grupos” diferentes como algo “não normal” ou como condição que fere a identidade cristã, tão e fortemente apresentada por estas pessoas. Usa-se, para tanto, argumentos cristãos, e neste ponto, vemos muitos grupos que são inicialmente distantes (católicos e evangélicos de várias frentes e bases mais conservadoras), mas que diante deste fato convergem numa mesma causa. Valem-se do direito de dizer e de afirmar posição(ões), apoiam-se na “Palavra” e na “Doutrina” e insistem que sua função é de “fazer o bem”, de “guardar valores”, etc. Dizem que não têm nada contra os grupos minoritários, de maneira mais direta, dizem que não têm nada contra os “homoafetivos” (que é o grupo mais atacado, mas não é o único), mas que sua opção sexual não converge para o plano de Deus e que eles não estão em sintonia com aquilo que se espera de uma sociedade “com traços cristãos”. Diante disso, acham-se no direito de se manifestar e de dizer que “estes” (homoafetivos) vivem em pecado, que são aberrações, coisas do gênero. As redes sociais usam um tom assim, o mesmo em algumas pregações, e por aí vai...

Deste modo e com esta postura radical, eles afastam ainda mais os que já estão afastados, legitimando uma prática da sociedade em que a exclusão e a dominação fazem parte do cotidiano. Isto é lamentável! Este é um ponto que me preocupa e por esta razão optei por escrever este artigo, pois tenho muito medo quando alguém diz que faz isto ou aquilo em “defesa” de “certa ordem” ou de “certa doutrina”, especificamente, ordem e doutrina cristãs. Será mesmo?... Vejo isso como algo muito sério e que pode ter consequências graves, para não dizer gravíssimas; tenho medo de que práticas assim assemelhem-se muito mais ao “farisaísmo”, combatido por Jesus, do que ao “cristianismo”, que deveria ser a continuação dos seus passos, pois decorre do seu seguimento. Cristão é aquele que segue a Cristo, e se o faz, faz isso através da humanidade de Jesus (é pelo humano-Jesus que temos acesso à divindade de Jesus - cf. Fl 2,6-9), pois ali (na sua humanidade) ele é o caminho. Ao tomar a decisão por segui-lo, resolve-se também por aceitar a sua vida e a sua proposta, que é o Reino de Deus, que basicamente é apoiado no amor, na paz e, destacamos aqui, na “justiça” e no respeito “a todos”; na busca e na reintegração “de todos”. Segue-se, portanto, a Cristo que diz: “Vinde a mim todos que estão cansados e oprimidos e eu vos darei descanso” (Mt 11,28). O mesmo Jesus diz aos outros: “Ai de vós...” (cf. Lc 6,24ss); e diz também aos fariseus (talvez diria a muitos hoje...): “vocês amarram pesados fardos e impõem-nos aos ombros dos homens e ao mesmo tempo se negam a movê-los...” (Mt 23,4ss).

Qualquer discurso ou prática que usa da lei (civil ou religiosa) para passar por cima da pessoa humana, está totalmente em desacordo com a proposta evangélica apontada por Jesus durante a sua vida, como pode se fazer notar na parábola do “Bom Samaritano” (cf. Lc 10,29-37) e na postura de Jesus em relação às mulheres (muitas delas prostitutas e excluídas da sociedade de seu tempo - um exemplo; Jo 8,1-11 “nem eu te condeno!”), crianças e cobradores de impostos, etc. No dizer dos Atos dos Apóstolos, Jesus foi alguém que passou “fazendo o bem” (cf. At 10,38). É um dado certo para a fé cristã que o nosso fundamento e o nosso agir devem estar ancorados na proposta do seguimento de Jesus, em seu aspecto histórico, onde irrompeu o Reino de Deus e do qual somos, enquanto Igreja, continuadores. Esta é a doutrina cristã, apontada pelo Vaticano II, na Lumen gentium.

Então, quando ouço dizer que alguém faz isso (agredir, desrespeitar, humilhar, etc) alguém, um grupo, um negro, um índio, uma criança, um pobre, uma mulher ou um homoafetivo (listei aqui os mais vulneráveis na sociedade) e afirma tal ação dizendo que esta é a doutrina cristã, ora, eu me pergunto: que doutrina segue? Será que estamos na mesma Igreja e comungamos da mesma fé? Peço desculpas, mas não consigo ver de outra forma. São tantos os documentos da Igreja, desde as Encíclicas sociais, passando pelo Vaticano II, na Gaudium et spes, até documentos recentes e de afirmações da Doutrina Social da Igreja, dos discursos dos últimos papas e diante de todas as campanhas pela dignidade da pessoa humana, pelo respeito à vida em todas as suas dimensões e amplitudes... que, sinceramente, eu não consigo entender esta “indiferença”. Será isto cristão? Há uma confusão geral e uma incompreensão do que é e como se vive a fé. Não se compreende a ação humana como uma extensão da ação da Igreja na sociedade, onde o testemunho que oferecemos é em favor da vida, da dignidade, do respeito, da tolerância e na capacidade de acolher o diferente porque ele é diferente; deve-se respeitá-lo e cultivar a sua integridade, e quando esta é ferida, o sentimento cristão deve ser o de resgate, de elevação, nunca, jamais, de abandono. O que fazemos com o batismo que temos e que nos liga a vida de Cristo? Teria Cristo, Jesus de Nazaré, também agido desta forma? Teria ele preparado um discurso de exclusão, justo ele que se sentou a mesa com os pecadores, com as prostitutas, com os pobres e marginalizados; justo ele que enfrentou Herodes, Pilatos e a supremacia religiosa; justo ele que morreu numa cruz, sendo solidário aos que sofrem, participando da nossa vida e fazendo da nossa esperança e do nosso sofrimento também os seus? Peço que me perdoem, mas eu não conseguiria ver um Jesus libertador que não liberta, eu não conseguiria ver um Jesus salvador que não salva, eu não conseguiria ver um Jesus que nos convida para o banquete, mas não nos deixa entrar... Isto não entra na minha compreensão de fé e acho difícil de sustentar.

Penso que a fé deve estar apoiada numa “autencidade” evangélica, ali ela é fiel; penso também que a fé deve ser vivida na “coerência”, no espelho e no dinamismo do próprio Jesus. Caso contrário, é fantasia e é enganação. “Autenticidade” e “coerência” foram aspectos que se pediu e se documentou na Conferência de Aparecida, em 2007.

Em muitos casos, olha-se muito a lei e a estrutura do que entendemos por ser Igreja, seus preceitos litúrgicos, seus palácios e regimentos...; mas nós nos esquecemos de que antes disso, de que esta Igreja é, primeiramente, “mistério”, ela é mistério que vem de Deus e nos aponta a salvação, e por isso apoia-se no plano de Deus, revelado e vivido por Jesus, e o qual nós somos continuadores. Em segundo lugar, esta Igreja é “povo”, e como povo, “Povo de Deus”, temos uma incumbência importante, nunca um privilégio. Quem quiser ser o maior, seja aquele que serve.

Eu pergunto: será que não nos preocupamos muito com a dimensão física e estrutural da Igreja e com isso com a nossa condição diante dela (e dentro dela) e nos esquecemos de que a Igreja é sinal e serviço no mundo? Será que não nos atemos demasiadamente a uma estrutura de normas e esquecemos-nos de procurar uma profunda e sincera vivência, diria, convivência. Será que olhar demais internamente não é fugir de um mundo que chora e clama por justiça e libertação? Do que estamos fugindo e do que a Igreja (apenas física) nos protege? Se entendermos, pela fé cristã, que Deus amou tanto o mundo e por amar tanto enviou o seu Filho, com que direito nós abandonamos e recusamos este serviço que acolhemos na fé? Se as atitudes de Jesus se dirigiram preferencialmente aos excluídos deste mundo, aos diferentes, com que direito nós “ainda” excluímos? Não estaríamos também nós, excluindo o próprio Cristo?

É para refletir [...]...

Diante disso, quero provocar uma reflexão a partir da fé cristã e em defesa dos direitos humanos, tendo por base a parábola da “Festa Nupcial” (cf. Mt 22,1-14; par Lc 14,20-24). Farei aqui uma releitura interpretativa, a fim de atingir o ponto em questão e “ousar” responder as perguntas que nos são apresentadas diante destas situações.

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Havia um homem que morava em certa cidade e nela ele alimentava as suas relações há bastante tempo. Em tudo ele era referência e a ele todos se reportavam. Era como se dissesse que em cada canto daquela cidade se manifestava algo que tinha a ver com aquele homem, que nunca invadiu a mesma em sua maneira de ser, mas que respeitava o seu ir e vir, aquilo que lhe era próprio, a sua liberdade. O que ele queria era salvaguardar que tudo seria bom e que tudo teria um bom fim.

Aconteceu que com o passar do tempo esta cidade foi aumentando em tamanho e crescendo em número de pessoas e, com o agito que circulava o seu bem estar, as pessoas foram se afastando e passaram a viver em outros propósitos e direções... O velho homem já nem era tão lembrado, sua referência estava distante, os mais novos nem o conheciam, e aos demais, ele foi alguém que trouxe sentido ali uma vez, mas que os tempos agora eram outros e havia outras e mais urgentes preocupações.

Mas chegou o tempo que o filho deste homem atingiu uma maturidade e no momento certo saiu da casa do pai e foi seguir o seu rumo, dando continuidade ao plano do pai, em comunhão, mas num jeito que lhe era próprio, específico e seu. A fidelidade ao pai era mantida e um guardião de extrema ligação com o pai e o filho acompanhava e guiava os seus passos. Nesta cidade, este filho chegou como um estranho, não quis se mostrar como filho do pai, mas quis fazer conhecer a vontade do pai por sua disposição e serviço. Ele se enamorou da cidade e dedicou-se inteiramente a ela, e nela encontrou e escolheu para si a sua noiva, levando-a consigo, para um encontro maior e pleno, um encontro no amor, na sua casa, na casa de seu pai.

A alegria do pai era tanta que resolveu fazer uma grande festa. Era o momento maior, sublime, era a união do seu filho com alguém que trazia a marca daquela cidade que o pai tanto amou e cuidou. Prepara-se a festa, um banquete, jamais alguém ouviu falar em algo tão grande, era um evento extraordinário. O pai na sua alegria e bondade pede que convidem todas as pessoas importantes da cidade, dedica hora a elas, sabe da importância que tem e espera deles o reconhecimento. Mas o pai estava esquecido e poucos ainda se importavam com ele, e recusaram o seu convite. O pai não se abalou, ainda era tempo de festa e mandou chamar a outros, pessoas de sua estima, pessoas em quem ele depositou confiança e apego; foram-se os convites, mas também estes recusaram. O pai sente, é um golpe forte, era como se ele não existisse mais, estava esquecido. Aqueles a quem ele tanto amou, recusaram a sua presença. O pai lamenta, sofre, mas vê a alegria do filho e quer ser fiel com ele, pois assim será fiel a sua noiva, que representa aquilo e aqueles que ele tanto quis. Era festa, era alegria, o pai pede e envia convites a todas as pessoas que ele conhece, vai aos lugares mais escuros e esquecidos da cidade, ele chama “a todos”: chama os pobres, os doentes, os que estavam na dependência química, os bêbados e moribundos, os que eram discriminados pela sociedade, os homoafetivos, os negros, os índios, as mulheres que foram espancadas por seus filhos e maridos, as prostitutas, os presos, as vítimas da violência, enfim, chama a “todos aqueles que ninguém vê, que ninguém toca e que ninguém sente”. O pai chama aqueles que são mais vulneráveis e diz que é para eles que ele preparou a festa. O pai estende a estes o seu convite, e para a alegria do pai, do filho e da noiva, eles aceitam o convite e se dirigem a casa do pai para festejar. Era uma alegria! Um entusiasmo!

Acontece a festa. Todos comiam, dançavam e se alegravam, e o noivo estava com eles! No meio deles! O pai, então, começa a percorrer os espaços da festa e começa a agradecer a todos que ali vieram, demonstra a eles a sua alegria, diz que a presença deles é importante e que eles que estavam na “desgraça” da vida, encontraram ali a sua graça, um tom novo, onde podem recomeçar. Aprende-se a viver. O pai lhes deu confiança e certeza, produziu neles o gérmen da esperança. E assim seguiu o pai...

De repente, o pai olha para o lado e vê uma pessoa diferente, uma pessoa distinta e bem apresentada, mas que não se alegra com os outros e que não se sente a vontade no meio onde está. Está desconfortável, sente-se incomodada. Esta pessoa não se mistura e o pai a olha e tenta reconhecê-la, mas mesmo assim se pergunta: “por que não está animada e feliz quando o noivo está aqui? É festa!”... O pai chega mais perto e olha bem para aquela pessoa e vê que ela se porta de maneira diferente. Ela está tão carregada com suas roupas que não se sente confortável para dançar e festejar com os outros. Tudo é pesado. Esta pessoa se enfeitou tanto para estar ali e deu tanta importância a outras coisas que se esqueceu do essencial, que é a alegria, a expectativa e a novidade da festa, o convívio com todos, que é a mesa comum e a partilha, o contato, o abraço, o beijo e o afago... O pai aproxima-se e pergunta: “Por que você não veio preparado para a festa? Por que está com estes trajes pesados que camuflam o seu ser e não nos deixam te ver realmente?...”

O pai, na sua imensa misericórdia e bondade, ainda tenta trazê-la para a festa, insiste que tire as amarras, que jogue aquelas roupas caras e pesadas e fique apenas com o que é importante. O pai mostra-lhe as demais pessoas que ali estão, pede que veja como estão felizes agora e o pai não entende como alguém pode ter se esquecido delas, o pai não entende como alguém pode ter feito mal a qualquer uma daquelas pessoas que ali estavam, ou coisa assim. O pai então chama esta pessoa para o meio e quer fazer uma aproximação, mas a postura da pessoa, sua rigidez, impede-a de ir.

“Isso não é correto”, diz a pessoa... “Não é esta a lei, não é assim que deveria ser... Eu achei que te conhecia e quis te impressionar com minha presença... Eu trouxe tudo o que considero importante e ‘estes’ não te trouxeram nada... Como podem se alegrar na presença do noivo?... Quem são eles, o que fazem?... Olhe aquele e aquele!... Veja aquela!... E aquele lá?!... Isto não está certo, vai contra o que é correto”.

O pai, com afeição e bondade, olha e diz: “Eles estão livres e acolheram com bom grado o meu gesto de bondade. Por que você ficou tão preso nestas coisas e não fez o mesmo?”. A pessoa respondeu: “Mas eu fiz tudo o que me disseram?”. E o pai respondeu: “E quem disse que está trajando roupa de festa?”.

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Amig@s!

Acho que é nisso que devemos nos ater quando nos depararmos em situações como esta de agora, neste descaso e desrespeito aos homoafetivos e a todos aqueles e aquelas que sofrem discriminação. Dizer que isso (estas atitudes de intolerância) é doutrina cristã. Absurdo! Estes discriminados, estes pobres, negros, mulheres, índios, crianças, estes “homoafetivos” são nossos irmãos e irmãs, são nossos amigos e amigas, são filhos de amigos, são companheiros de trabalho e de Igreja, são nossos vizinhos, são os médicos que nos atendem e os advogados que nos defendem. Ora, podemos ignorar a tal ponto? Qual é o princípio da fé cristã e em quê estamos nos fundamentando? Se olharmos apenas a lei pela lei, é bom lembrar que a letra pela letra nos anula, torna-nos cegos; devemos ter cuidado porque a lei mata e destrói. Contudo, se olharmos para a vida e obra de Jesus de Nazaré, nós veremos que há um caminho a seguir e este caminho se faz no declarar “Felizes e Bem-Aventurados” todos aqueles que não são felizes e não são bem-aventurados na nossa sociedade, e na Igreja. A prática de vida de Jesus, principalmente por suas bem-aventuranças, provoca-nos a um olhar mais íntegro e sincero para com aqueles que são mais vulneráveis e que clamam a nós um gesto de esperança. Devemos ser voz destes e daqueles que mais precisam, daqueles que trazem hoje um “novo rosto de pobre”, que nos fere na nossa presunção e que “arde em nós”, como bem disse a Conferência de Aparecida.

Isto é o que defendemos e é nisto que se apoia a fé cristã. Se para a fé cristã a união (casamento) deve ser entre um homem e uma mulher e isso é o que vai tornar esta união um sacramento (matrimônio), tal afirmação verdadeira para a doutrina cristã não nos dá o direito de agir em agressão a outros e outras que veem numa união homoafetiva a sua plena realização. A exclusão gera violência, a violência produz a morte, e assim... O que eles esperam de nós cristãos não é uma legitimação eclesiástica de sua relação, o que eles esperam é respeito, é o seu reconhecimento na dignidade da pessoa humana, no seu respeito à vida, na sua integridade; um gesto de amor e zelo que deve caracterizar o ser e o agir cristão. Este é um ponto que está se deixando escapar por excessos fundamentalistas, e isto é perigoso. O olhar do cristão será e deve ser um olhar de justiça, na intenção do outro, no atendimento ao outro, chamando o outro à felicidade e à vida.

É claro que há excessos, é evidente. Mas ele ocorre em vários lados. Em alguns casos como grito de ajuda e de sobrevivência, em outros, outras razões, não sei. Mas qual é a nossa postura? Saber conviver com o outro e respeitar a sua diferença é mais coerente com a proposta cristã e é este o caminho. Se a lei do Estado tenta favorecer os seus direitos é porque estes são negados, e este é o dever do Estado: cuidar e proteger os mais vulneráveis, garantindo-lhes direito. Fazer isso não fere o nosso direito de cristão, muito pelo contrário, assegura-nos, pois demonstra o caminhar para uma sociedade plena e justa, na qual reina a paz e a igualdade, num dizer cristão, a fraternidade.

Esta é uma reflexão que vai longe e não temos suporte para tanto, mas o que fizemos aqui foi apenas chamar a atenção para alguns pontos, que entendo que são sérios e urgentes. Talvez você não concorde comigo, e é o seu direito. Eu o respeito. Mas é assim que vejo e é assim que imagino uma ação cristã, que nunca deve ser vista como uma propaganda eclesial em busca de mais fiéis, como muitas vezes se vê e se faz, mas sempre na proposta de seguimento de Cristo e de seu Reino que diz: “eu tive fome e me deste de comer; tive sede e me deste de beber; eu era estrangeiro e me acolheste; estava nu, e me vestistes; doente, e me visitastes; na prisão, e viestes a mim” (Mt 25,35-36). Aí responderemos: Mas como? E Ele dirá, de modo firme: “todas as vezes que fizestes a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40).

Se nós nos esquivarmos desta atenção a estes “pequenos” e nos recusarmos a ser a sua voz em prol da justiça, estamos nos esquecendo do caminho que devemos seguir e estaremos trazendo à nossa consciência os “novos crucificados” de hoje. Não podemos responder como Caim que interpelou a Deus: “sou eu o ‘cuidador’ de meu irmão?” (Gn 4,9). Se nos mantivermos fechados e se falarmos que esta causa não nos importa, estaremos deixando estes e estas à sorte, a sorte do mundo que mata e destrói, que humilha e corrompe. Se tivermos coragem para isso, deveremos ter também a coragem de responder a Deus quando este nos perguntar, a modo de Deus a Caim (cf. Gn 4,9-10): Onde está o teu irmão?... Que fizeste?... A voz do sangue do teu irmão clama do solo a mim!

Será isso o que queremos? Acho que não!




Rio de Janeiro, Brasil, 12/04/2013

Cesar Kuzma é Doutor em Teologia pela PUC-Rio.
Autor do livro “Leigos e Leigas”, da Ed. Paulus. É um dos organizadores do livro “Age Deus no mundo?”, da Editora PUC-Rio e Reflexão.