Por Cesar Kuzma - teólogo
Falar da morte é algo que para muitos traz
uma sensação desagradável e de desconforto, talvez pela lembrança, talvez pelo
sofrimento, ou ainda, medo do desconhecido... Será que é o fim? Será que tudo
acaba?...
No Egito antigo havia a prática da
mumificação como uma maneira de guardar e proteger o corpo (dos faraós) que
poderia, num futuro, voltar à vida. Em algumas tribos do Brasil se praticava
uma forma de enterro em que o corpo era colocado num vaso em posição de feto,
pronto para um novo nascimento. Mesmo em alguns “vestígios arqueológicos” é
possível achar gravuras milenares que retratam a crença na vida após a morte. Isso
também trouxe consigo muitos mitos e lendas que até hoje perduram pelo nosso meio.
Porém, partindo de uma concepção judaica, a morte representava para alguns um
fim e para outros uma espera para a vida futura, quando após a morte se
adentrava num lugar misterioso, chamado “Xeol”,
mansão dos mortos. Mas, esta espera era cultivada na crença de um Deus que era
o autor da vida e essa vida futura seria dentro de um universo junto com esse
Deus. Por isso, dentro da cultura judaica, como também em outras, a maneira como
se preparavam os corpos para a sepultura era numa forma de espera para o grande
dia, o dia da ressurreição final, ou da maneira como eram tratadas estas
crenças e esta esperança.
No momento em que houve um contato com outras
culturas, essa cultura semítica do ser humano também foi alterada. É preciso
notar que a palavra hebraica ruah,
que significa espírito só era atribuída, de início, a Deus. Deus era o Espírito
que dava a vida (cf. Gn 2,7), que pairava sobre as águas (cf. Gn 1,2). Quando o
povo da Bíblia se dirigia ao ser humano (Adam),
eles o referiam na totalidade de seu ser e de suas relações. Não se falava ou
se usava a palavra “espírito”. Além da palavra Adam, ser humano, utilizava-se, também, a palavra nefesh, que é fôlego de vida; a palavra basar, corpo e a palavra leb, muito usada nos textos sapienciais
que significa coração; porém, todas elas traziam referência ao ser humano
inteiro, um ser único. Quando também no NT Jesus fala “Isto é o meu corpo”,
este corpo representa a totalidade da corporalidade de Jesus, na sua dimensão humana,
cósmica e infinita, em suas relações com Deus e com a humanidade, na proposta
de sua missão... e não apenas parte. Quando o salmista canta que o seu coração
se volta para Deus, significa que todo o seu ser está voltado para Deus.
Com a influência da língua grega, após o
exílio, começa a aparecer a palavra “alma”,
trazida da filosofia grega com diversos significados, pois poderia ser a razão,
a emoção, a vontade, os sentimentos, etc. O problema se dá que para os gregos o
ser humano não representava uma totalidade, mas uma junção de corpo e alma,
diferentes entre si. Para Platão a alma era prisioneira do corpo e deveria de
todas as formas se libertar, tem-se aí uma dualidade e não uma unidade (ao
contrário da compreensão bíblica). É preciso notar que quando Paulo percorreu a
Grécia não se viu influenciado por estes pensamentos, mantendo a clareza de uma
antropologia centrada na unidade do ser humano. Na tradição grega do AT (LXX) a
palavra nefesh é com frequência
traduzida por psique. Na idade média
quando se traduziu o texto sagrado para o alemão, usou-se a palavra seele, que essa sim significa “alma”. Porém, mesmo aí se considerava o
ser humano na sua totalidade e não como uma força espiritual, ou como algo
dentro do corpo ou separado deste. Apenas mais tarde, na época patrística, com
o avanço do pensamento neoplatônico é que se absorveu a palavra alma dentro da
tradição cristã e a Igreja por certo tempo adquiriu esse conceito de dualidade,
o que hoje se vê de maneira ampliada, pois falamos da pessoa toda, de todo ser,
de toda a vida que ali se encontra. Isto se torna claro na carta de Paulo aos
Coríntios onde se fala da ressurreição, como transformação: esse corpo acaba, é
corruptível, mas se recebe de Deus um corpo incorruptível, eterno, sem dor, sem
mancha, como Cristo (cf. 1Cor 15,35-53). A semente plantada não morre, mas se
transforma numa flor...
Por isso que hoje, para os cristãos, a morte
passa a ser vista de outra forma, não é o corpo e a alma que se separam, mas
uma vida (a totalidade da pessoa) que é transformada em glória, no plano de
Deus, pois a justiça de Deus não é a nossa justiça, o pensamento de Deus não é
o nosso pensamento. A nossa certeza na ressurreição se torna viva na certeza do
Cristo ressuscitado, que não se vê, mas se sente. É uma questão de fé. A
ressurreição de Cristo mostra de forma evidente a natureza humana e divina,
onde a vida sempre estará ligada ao que foi, ao que é e ao que será. O Reino de
Deus, que irrompe com Cristo, rompe o tempo e o espaço e se instaura de glória,
desde já e para sempre.
Sendo assim, para os cristãos, a morte
culminará com a presença de Deus, onde por Cristo a promessa se selou com uma Aliança
eterna, pois o próprio Deus assumiu a nossa natureza, rebaixando-se e nos
elevando até ele (cf. Fl 2,6-11); ressuscitando nos tornou dignos de sua glória
para sempre.
Com isso, trazendo agora para um contexto
mais próximo a nós, pode se dizer que a morte é uma experiência única que tem
que ser feita pela própria pessoa. É um momento único e especial que ninguém
pode fazer por nós. É um momento de entrega total em que conhecemos, realmente,
quem nós somos, e onde, de fato, encontra-se Deus em nós. Ela não é um fim e
nem um começo, pois já começamos no momento no ventre de nossa mãe, e mesmo
antes, já existíamos no pensamento de Deus, pois somos frutos do seu amor. A
morte é construída por nós através da vida, é resultado da vida, é fruto do
amor. Só quem ama entende o sentido da morte; só quem ama entende o sentido da
vida. Só quem ama sente a vida e a morte, e, com isso, sente o amor que brota
no coração e transcende a tudo e a todos.
Na morte trazemos os momentos “ricos” da vida
para se tornarem eternos. É sentir que a vida é um construir do sentido da verdadeira
vida. A morte será uma passagem na qual deixaremos de ser limitados e
passaremos a ser ilimitados, deixaremos de ser tempo para adentrar no eterno. Vista
assim a morte torna-se o coroamento da vida, é a linha de chegada, é o encontro
definitivo com Deus, que desde já se aspira em esperança. Na morte o mundo é
visto como realmente ele é. Uma morte entendida desta maneira é construída a
cada dia, lentamente, na esperança, mesmo ingênua, de caminhar na direção de
quem, e por quem, fomos criados. É Deus que nos chama, e ao seu chamado nós
respondemos na fé. É a fé que nos faz caminhar rumo a este horizonte
definitivo, no qual Deus é a última resposta.
Hoje se tem medo da morte porque não se
conhece o outro lado que ela nos revela, vemos apenas um lado e nos acomodamos
com o pouco que temos, temos medo de encarar, de seguir para águas mais
profundas... Não temos a fé de andar sobre as águas... Queremos ficar trancados
no sepulcro de Lázaro... Deitados na cama onde jaz a filha de Jairo... Não
queremos rolar a pedra do Santo Sepulcro e se abrir para o que virá... Apegamos-nos
ao nosso mundo porque não nos deixamos envolver por um amor maior que nos atrai
e nos chama.
A porta não está trancada, ela está aberta. A
pedra do sepulcro já rolou, mas recusamos a sair. Se ainda não entendemos que a
morte é uma etapa necessária para ressuscitarmos no profundo amor de Deus,
talvez seja porque não conhecemos e tememos este amor, não entendendo que Deus
não vinga, mas ama, perdoa e acolhe, assim como foi com Jesus. Deus não nos
julga de cima, mas nos envia o seu Filho, que se fez humano como nós, que nos
conhece em todo o nosso ser, que é o nosso irmão maior... Deus enviou o seu
Filho para nos salvar, para dar-nos a verdadeira vida. Em Jesus, vemos que a
sua morte foi um sinal de entrega total por Deus e por nós. Jesus se entregou
profundamente no amor e foi acolhido pelo Pai e pelo seu amor todos fomos chamados
à ressurreição, para conhecer o profundo e magnífico amor de Deus. Portanto, a
morte é uma decisão de olhar Deus de frente a e se entregar no seu amor. É um
lançar-se na fé e na esperança!
Algumas pessoas temem a morte por se apegarem
a coisas passageiras que a traça corrói (cf. Mt 6,19). Por mais que tentem
preencher sempre ficará um vazio, e este vazio gerará uma angústia difícil de
controlar. Infelizmente, muitas pessoas se afastam umas das outras porque não
conseguem ver nelas um vestígio, um sinal de amor, por menor que seja. Por mais
que fujam, nunca conseguirão fugir totalmente; por mais que procurem, nunca
encontrarão; porque fogem do que não existe e procuram o que não têm. Este
silêncio, desespero e vazio faz com que as pessoas olhem apenas para si mesmas e
não aos outros, vejam sempre o seu rosto e não o de Deus, criando um isolamento,
um “inferno” para elas mesmas, acabando sendo a morte uma fuga de uma vida que
não existiu ou que não foi vivida, morre-se em solidão.
Por outro lado, existem pessoas que toda a
vida é uma alegria, nem que seja algo escondido por dentro. São pessoas que
sabem olhar no outro e viver no outro, vivendo em Deus, mesmo que esse Deus,
para eles, ainda seja desconhecido como Deus, mas o sentem e o vivem em seus
sentimentos e ações. São aquelas pessoas que não passam pela vida, mas que vivem
a vida; que não respiram o ar, mas que respiram o amor; que não olham, mas veem;
que chorando, sorriem; que vivendo morrem e morrendo vivem, porque se entregam
no amor e aqueles que se entregam no amor não morrem, porque a vida é sempre
vida e a morte é construída em comunhão com tudo e com todos. A morte será
apenas uma porta para a ressurreição, onde Cristo será tudo em todos e em todas
as coisas (cf. 1Cor 15,28). Onde o passado e o futuro se encontrarão num
presente eterno, num reino escatológico, presente e permanente, onde o “ainda não” se torna “já” e o que é “terno” se torna “eterno”,
num tempo que já não é mais tempo, mas é graça e plenitude, um kairós escatológico e triunfante,
absoluto... É a vida em Deus. A morte será o portão para o “Novo Céu e a Nova
Terra” (Ap 21, 1).
É o momento em que o ser humano escondido
será revelado, face a face, sem mentiras, sem máscaras, sem pudor, sem
respeito, mas com amor. É o momento em que o ser humano terá a certeza de ser
fruto de um amor maior e ao mesmo tempo misterioso, que o envolve e o coloca
diante da face de Deus.
O ser humano nasce totalmente ou acaba de
nascer na morte. A morte é o fim de um processo, uma cisão entre o tempo e a
eternidade. Porém, o ser humano é mais que tempo porque ele suspira para a
eternidade; ele é pessoa, é vida, é amor pleno, resultado do amor infinito de
Deus, é criação, é filho.
A morte não é um fim-fim, mas um fim-como, um
fim-para, é uma meta alcançada. É como uma gravidez pela qual a mulher chega ao
fim e se torna mãe, é como uma faculdade na qual o fim fará um professor... A
morte é o fim de um espaço e tempo de vida humana na história para se tornar
começo do infinito e eternidade com Deus. Imagem e amor de Deus eternamente e
eternizando a história.
Contudo, pode-se afirmar que, morrer é se
entregar no amor, é viver no amor. É uma experiência única, onde a solidão se
transforma em comunhão. É sentir e se entregar ao mistério que Cristo sentiu. Cristo
que, humilhando-se até nós, deu-nos a vida e com a vida livrou-nos da morte
eterna. Nele o mundo foi julgado e redimido por Deus. O juízo foi feito, a
porta foi aberta, o Pastor está chamando.
Por fim,
morrer, em Cristo, é viver, no amor, para sempre. Aleluia! Amém!