terça-feira, 3 de julho de 2012

Entrevista concedida à edição 25 da Revista Paróquias, que tratou sobre a atuação do cristão-leigo na Igreja, com base na leitura do livro “Leigos e Leigas – força e esperança da Igreja no mundo”, de Cesar Kuzma.


Cesar Kuzma

Cesar Kuzma, teólogo leigo, casado há 9 anos com Larissa, reside atualmente na cidade de Curitiba, Paraná. É Doutor em Teologia pela PUC do Rio de Janeiro. No momento, trabalha na PUCPR, onde é professor de Teologia Sistemática e Teologia Pastoral e exerce também a função de Coordenação do Curso de Teologia (Graduação). Seus projetos de pesquisas são desenvolvidos co-relacionando as áreas de escatologia, eclesiologia, cristologia e pneumatologia. Procura sempre discernir a partir da visão do leigo e sua situação na Igreja e na sociedade. Sua atuação na Igreja começa desde a infância pelo exemplo dos pais, já na adolescência se viu envolvido com a Pastoral da Juventude, passando depois a trabalhar como assessor teológico-pastoral em grupos, movimentos, diversas pastorais e comunidades eclesiais.


1.  Quem são os leigos e leigas de hoje?


Os documentos da Igreja trazem importantes definições sobre quem são os leigos e as leigas na Igreja, bem como a sua função específica adquirida pelo batismo. Do Vaticano II tiramos esta importante definição: “São, pois, os fiéis batizados, incorporados a Cristo, membros do povo de Deus, participantes da função sacerdotal, profética e régia de Cristo, que tomam parte no cumprimento da missão de todo o povo cristão, na Igreja e no mundo” (Lumen gentium, n. 31a). Baseando-me nesta definição conciliar, acredito que eu fui muito feliz na definição que apresentei para os leigos no meu livro, inserindo até como texto de contracapa: “Quem são os leigos e as leigas de hoje? Será que é lícito caracterizá-los apenas de maneira geral e por vezes pejorativa – leigos? Por certo que não. Esses leigos, homens e mulheres, constituem uma parcela importante da Igreja e possuem rostos próprios. Logo, suas interrogações devem ser ouvidas e aproveitadas porque trazem para dentro da Igreja o olhar íntegro da sociedade. Ouvi-los é ouvir a sociedade; inseri-los e formá-los na comunidade eclesial é preocupar-se com o futuro desta e também da sociedade” (Leigos e Leigas, p. 18-19).


2. Qual a vocação dos leigos na Igreja?


Eu gosto de dizer que a vocação do cristão leigo na Igreja, que ele adquire pelo batismo, se dá a partir da sua opção por Cristo no horizonte do Reino de Deus. É daí que se origina a sua participação na função profética, sacerdotal e real de Cristo. Sua vocação está em sintonia com toda a missão eclesial, pois faz parte deste Corpo e deve, a partir de sua situação particular, colaborar na edificação do mesmo. Diz o Vaticano II que “a vocação própria dos leigos é administrar e ordenar as coisas temporais, em busca do Reino de Deus” (Lumen gentium, n. 31b). Este mesmo artigo do Concílio que citamos nos diz que leigos e leigas devem viver a sua vocação, o seu chamado, dentro do mundo em que se encontram, dentro das situações particulares da vida, atuando como fonte de santificação, sendo testemunho de fé, de esperança e de amor. Com isso, podemos afirmar, com nossas palavras, que a vocação de todo cristão leigo é essa: ele é chamado por Cristo a uma missão. É chamado por Cristo a incorporar a sua Igreja, tornando-se membro ativo e efetivo de seu corpo. Ao atender a este chamado o cristão leigo, juntamente com toda a Igreja, representa a Igreja por suas ações e atitudes concretas de vida. Traz ao mundo a esperança do Reino. Propicia o diálogo aberto com a sociedade.

3.  Como articular o trabalho dos leigos com a missão da Igreja?
 

Primeiramente, os leigos devem entender que sua ação no mundo é também uma ação de Igreja, pois agem (ou deveriam agir) no mundo a partir de sua convicção de fé. Uma vez que os leigos se assumem como Igreja, passam a ser luz desta Igreja, sinal de sua mensagem diante do mundo: lumen gentium. Não pode haver uma dicotomia entre a vida familiar, social e profissional com a vida eclesial. Uma deve ser reflexa da outra. Nesta articulação, deve-se buscar “autenticidade e coerência”, conforme assinalou a Conferência de Aparecida (DAp n. 210). Em segundo lugar, deve se fortalecer a vocação dos leigos e leigas diante do mundo secular, a fim de que eles possam levar à sociedade a verdade do Evangelho e transformar as estruturas que nos envolvem. Entendo que esta articulação é fundamental para a missão de toda a Igreja, que como Cristo, está encarnada no mundo, a fim de assumir as suas realidades, e transformando-o na perspectiva do Reino futuro.


4.  Os leigos são apenas convocados para atuar em alguma pastoral ou possuem outra atribuição para o crescimento da comunidade eclesial?


Conforme tentamos responder anteriormente, o chamado feito para os leigos, como para todos os fiéis é um chamado vocacional, portanto é um chamado feito pelo próprio Deus, respondido a Este pela fé. Basicamente, é o que se busca compreender no fortalecimento da maturidade eclesial. É certo que, em algum momento, eles são chamados a se comprometer mais diretamente com uma ação específica da Igreja local, com uma pastoral ou um movimento. Quanto a isso, eles devem atender na medida em que isso encontre sintonia com as suas vidas e fortaleça a comunhão com toda a Igreja. No entanto, suas ações eclesiais não se limitam apenas a uma ação interna na Igreja (intra-eclesial), numa pastoral ou movimento, mas está mais além, é extra-eclesial. O chamado aos leigos é um chamado para o mundo, para atuar na sociedade, para ser sinal da esperança do Reino para todas as pessoas, em lugares e situações em que apenas por meio deles a mensagem salvífica de Cristo pode chegar a seu destino. Corresponde a sua vocação no mundo secular, onde devem atuar nas circunstâncias particulares da vida em que se encontram, é o que diz o Concílio.


5.  Quais dificuldades são encontradas quando o leigo assume papel de liderança?


Quanto a isso não há uma resposta unânime. Tentamos deixar isso claro no livro. Para mim, é um fato que existem dificuldades quando leigos decidem assumir papéis preponderantes na Igreja, porém, elas existem ou não dependendo da diocese e da comunidade de fé que esses fiéis participam. Nós temos comunidades com abertura, que possuem um frutuoso diálogo, mas também temos outras que se fecham. Contudo, a partir do que acompanho e das comunidades que participo e presto assessoria, ilustro, para este momento, duas dificuldades principais: 1) Dificuldade para se sentir Igreja. O sentimento de pertença, o sentir-se sujeito eclesial, entender a sua vocação e missão etc. Vejo que isso ainda é um obstáculo para muitos. 2) Dificuldade no acesso à formação teológica e pastoral de qualidade. Em algumas dioceses temos cursos de formação de lideranças leigas, mas em outras não. Em algumas comunidades se favorece e se auxilia para este fim, em outras nem se pensa sobre isso. São poucos os lugares que leigos e seminaristas podem dividir uma mesma sala e debater questões de fé e de formação. Os estudos são separados e rotulados para este ou para aquele. Há também carência de incentivo financeiro para que os leigos tenham uma boa formação. A meu ver, estas não são as únicas, todavia se estas duas dificuldades fossem superadas teríamos outra imagem de Igreja no futuro, com certeza mais comprometida e com mais ação.

6.  Quais os avanços e contribuições que a Igreja ao longo dos anos, trouxe para que a inclusão do leigo fosse ampliada e merecidamente ocupasse lugar de destaque na comunidade?
 

Nós já encontramos reflexo disso em período pré-conciliar. Naquele momento alguns teólogos já se propunham a discutir a questão dos leigos e buscar formar uma eclesiologia de comunhão na qual eles fossem incluídos na missão de toda a Igreja. Tal intenção torna-se concreta no Concílio Vaticano II (1962-1965), na Constituição Dogmática Lumen gentium, que traz, primeiramente, a definição da Igreja como mistério salvífico e, em segundo lugar, a Igreja como Povo de Deus. Definindo a Igreja como Povo evidencia que todos façam parte de um único corpo que tem o Cristo como seu centro, sejam eles leigos ou leigas, religiosos ou religiosas, presbíteros, diáconos ou bispos. Não é a minha função específica que me torna Igreja, mas é o batismo e minha opção por Cristo e pelo seu Reino. Não existe um membro no centro, pois Cristo é o Centro de toda a fé. Sem dúvida, o grande marco para a inclusão dos leigos e o seu merecido destaque aconteceu no Vaticano II. Neste Concílio, os leigos ganham um capítulo dentro da Lumen gentium e um Decreto específico que aponta para a sua missão: Apostolicam actuositatem. Como consequência deste Concílio temos as Conferências Episcopais, que para nós da América Latina foram marcos importantes. Desde Medellín e Puebla, que ressaltam a importância da autonomia dos leigos nas ações sociais e políticas, na organização de associações e entidades, até Santo Domingo e Aparecida, que fortalecem o seu protagonismo e a sua ação na Igreja como sujeitos eclesiais. Leigos e leigas possuem um jeito próprio de “ser e de fazer” Igreja e essa particularidade é trazida para o fortalecimento de uma Igreja de comunhão.

7.  É evidente que a unidade da Igreja é imprescindível, quando o testemunho dos leigos provoca a certeza que há uma grande responsabilidade no “ministério” que exerce. Então, como criar espaço para a formação destes fiéis que assumem sua fé e compromisso na participação ativa da Igreja?


Como expressamos acima, a formação dos fiéis leigos é fundamental para o bem de toda a Igreja. Uma Igreja melhor formada será mais madura e comprometida com a fé que professa. Assim sendo, terá uma coerência maior da sua ação cristã diante do mundo. Entendo isso como um fato que deve ocorrer. Para que isso se torne viável dependemos de algumas situações específicas: 1) O despertar da vocação leiga. Será que hoje os leigos sabem da sua vocação? Será que eles sabem da sua importância dentro da missão de toda a Igreja, do seu compromisso e de que forma eles podem contribuir? Este é o primeiro passo. 2) Romper com o clericalismo que existe. Se uma Igreja fica identificada apenas com o clero torna-se difícil desenvolver uma vocação laical, pois o leigo não se sentirá Igreja. Essa acusação desta tendência clericalizada aparece nos documentos oriundos das Conferências Episcopais e também por João Paulo II na Christifidelis laici, que trata isso como um perigo para a autonomia dos leigos. A Igreja deve ser identificada com a comunidade, que é composta por leigos, clero e religiosos (que também são leigos). Nesta esfera todos têm direito a uma formação e esta deve ser feita com qualidade e competência, sem alienações, mas em busca de uma verdade que liberta e que compromete na fé. 3) Um próximo passo é criar espaço dentro das comunidades, onde se possa estudar e refletir sobre a fé cristã, juntamente com os problemas sociais e particulares existentes. Propõem-se assim uma fé encarnada. 4) Um passo mais além é a concretização de cursos de teologia que possam oferecer uma formação madura e de qualidade a todos os membros da Igreja. Essa já é uma realidade em muitos lugares e temos hoje um grande número de féis leigos que decidem estudar teologia, a fim de dar razões da sua fé e de compartilhar a sua vida profissional diante desta nova perspectiva. O que falta aí é o apoio institucional para que essas iniciativas se fortaleçam. Muitas vezes, nos documentos da Igreja, essas coisas são ditas e são resolvidas, mas na prática ficam longe da realidade.
 

8.  No Documento de Aparecida há um destaque para o processo de formação dos discípulos missionários, cuja missão é decisiva em sua atuação. Por isso, como fazer com que esses sujeitos, no meio eclesial, busquem e realizem sua missão de forma integrada e testemunhal, como forma de congregar a vida na Igreja?
 

O Documento de Aparecida nos apresenta no artigo 276 que a vocação e o compromisso de ser discípulos e missionários no mundo de hoje requer clara e decidida formação dos membros da Igreja, qualquer que seja a função que eles desenvolvem. Aqui entram também os leigos que não são mais objetos de evangelização, mas sujeitos eclesiais, portadores da mensagem salvífica, membros ativos e atuantes na missão de toda a Igreja. Por isso reafirmamos a importância de favorecer uma formação de qualidade e o fortalecimento da pertença eclesial. Os leigos compõem a Igreja, vivem e atuam com ela. Sua formação deve trazer aspectos que enriqueçam este compromisso, mas que abram perspectivas para a sua inserção no mundo, local próprio da sua vocação (DA 283). Uma vez fortalecido o princípio de pertença, a sua missão no mundo será um testemunho convicto da fé que professam.


9.  Em seu livro “Leigos e Leigas – força e esperança da Igreja no mundo”, o senhor expõe em um dos capítulos sobre  a tensão entre o clero e os leigos, como um problema histórico. Desse modo, ainda pode-se dizer que hoje existe algum fato que não está em sintonia com a missão da Igreja?

Quando colocamos no nosso livro esta tensão entre clero e leigos, nós nos baseamos em dados da história da Igreja, que se viu muitas vezes separada internamente por lutas de classes. Em alguns casos o poder de serviço perdeu espaço para o poder de domínio e uma separação intra-eclesial acabou ocorrendo. Isso foi dado por encerrado no Vaticano II pela definição de Igreja de comunhão. A partir de então não se deveria mais falar clero e leigos, não poderia ter mais separações no seio da Igreja, mas se deveria fortalecer a ideia de comunidade e ministérios. Na Igreja todos são chamados, cada um a seu modo e no horizonte da sua vocação. A riqueza e a edificação da Igreja acontecem com o esforço mútuo de todos os seus membros, guiados pela ação do Espírito de Deus. Todavia, às vezes notamos que essa Igreja de comunhão não acontece em vários lugares. Nem sempre os leigos têm voz, quando deveriam ter; nem sempre há uma comunhão fraterna entre leigos e clero, quando deveria ter; nem sempre os seus direitos eclesiais são respeitados, quando deveriam ser etc. Porém, estas não são situações generalistas, mas ocorrem em realidades específicas, variam de comunidades para comunidades, de leigos para leigos, de clero para clero e de clero com leigos. Se afirmássemos aqui que esta tensão não existe mais, estaríamos nos enganando.

10. Há exemplos de leigos empresários que apostam na promoção de seu trabalho para a Igreja. Então, como detectar um papel evangelizador desse leigo que busca intermediar suas perspectivas e anseios para uma Igreja dinâmica e que favorece o bem para os fiéis e o crescimento humano-cristão no meio eclesial?

A proposta cristã se estende a todos os homens e mulheres de boa vontade. Sempre que uma ação provocada por um empresário cristão favoreça o bem comum e o crescimento humano e cristão, tal ação deve ser vista com bons olhos e incentivada. A grande pergunta que todo cristão deve-se fazer é essa: “a quem servimos?”. Se colocarmos esta pergunta na frente de nossas ações e decisões teremos a chance de vislumbrar outra realidade para a sociedade. O que precisamos fazer é criar mais espaço para que situações assim aconteçam. Isso pode ocorrer valorizando a ação particular de cada pessoa como uma ação eclesial. A Igreja não é um mundo a parte, ela faz parte deste mundo e está inserida nele. Volta-se aí a questão da formação. Diz o Documento de Aparecida: “Favorecer a formação de um laicato capaz de atuar como verdadeiro sujeito eclesial e competente interlocutor entre a Igreja e a sociedade, e entre a sociedade e a Igreja” (DA 497a).

11. Como os princípios conciliares de comunhão e corresponsabilidade na Igreja podem ser vividos entre os leigos?

O princípio de comunhão deve ser vivido internamente na Igreja, sentindo-se parte de um todo, com uma vocação e missão específica. A sua pertença a Igreja não é um acaso, mas é uma resposta de fé a uma experiência concreta de vida, no encontro com Deus, fortalecida no convívio fraterno, na escuta da Palavra e na comunhão eucarística. Automaticamente, isso os levará ao sentimento de corresponsabilidade pelas ações da Igreja na sociedade em que vivem. A missão dos cristãos leigos não é uma missão isolada, mas conjunta, que está em comunhão, que tem um fim único e um destino comum, que é Cristo e o seu Reino.

12. No conceito de “Povo de Deus” dado pelo Concílio do Vaticano II, como os leigos se inserem?

Os leigos são inseridos no conceito de Povo de Deus do Concílio Vaticano II através do sacerdócio comum de todos os fiéis, adquirido pelo Batismo. Participam assim da vocação da toda a Igreja à santidade, participam da sua ação profética e de sua missão. No conceito de Povo de Deus “todos” são chamados a dar ao mundo a razão de sua esperança.

13. Qual a intervenção cultural e social dos leigos católicos em nosso país, hoje?

Os leigos possuem papel preponderante na sociedade em que vivemos, pois podem contribuir de muitos modos para a propagação da mensagem evangélica. No aspecto cultural isso pode ocorrer de várias formas, desde a educação de nossos jovens e de nossas crianças, quando leigos comprometidos resolvem assumir a questão da educação como uma prioridade. Neste ponto temos muitas pessoas anônimas, mas que são, nas suas ações, semente de esperança para um futuro melhor. Também no passado, principalmente durante o regime militar, tivemos uma participação maior nas artes cênicas e na música. Ali a mensagem cristã atingia o seu objetivo dentro do mundo secular, pois se pregava a liberdade, a igualdade e a justiça. Isso talvez se esfriou um pouco no momento atual. No lado social temos muitos exemplos de pessoas engajadas com o compromisso cristão, pessoas capazes de doar a sua vida em prol do amor ao próximo. Aqui também, muitas pessoas anônimas. No entanto, gostaríamos de terminar esta nossa entrevista prestando uma singela homenagem a uma leiga engajada e comprometida com a sua fé, e que pode ser para nós leigos e leigas, um sinal de força e de esperança. Alguém que morreu trabalhando como cristã e como leiga, sempre em nome da justiça e do amor, pois sua vocação se deu certamente no encontro com Cristo no horizonte do Reino de Deus. Falamos aqui de Zilda Arns.

Parte desta entrevista, encontra-se publicada na revista Paróquias, edição 25.
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